Tem dias em que eu fico muito feliz por ser do jeito que eu sou… Uma vez perguntei para uma amiga minha que entende de temperamentos qual era o meu temperamento, porque eu não sabia. Ela disse que eu era sanguínea, tão sanguínea que deveria me enxergar como um exemplo de tudo que define o tal temperamento. Fiquei feliz, sempre achei que eu era assim meio fora do mundo porque devia ter alguma espécie de TDAH ou um cérebro que nasceu com alguma alteração de fábrica. Fui então ler sobre os sanguíneos e vi que eles realmente são parecidos comigo, sei lá, é bom se sentir parte de alguma coisa.
Um tempo depois, quando nos encontramos novamente e de novo falamos sobre isso, resolvi que eu observaria de forma atenta o meu comportamento social por alguns dias, para tentar entender como funcionava tudo isso na minha vida e foi engraçado perceber que eu pareço meio louca sem fazer nenhum esforço. E vamos ao meu experimento!
Acordei um dia e resolvi ir no meu antigo prédio para dar um abraço na zeladora, que não via fazia muito tempo. Conversamos sobre a vida dela, sobre o casamento e os filhos e choramos na porta do prédio porque ela se sentiu muito especial de eu ter ido lá só pra dar um abraço nela.
Saí para correr um outro dia e a Polícia Federal fazia uma escolta com algumas dezenas de motos numa das ruas que eu iria atravessar. Um policial fechou o cruzamento da rua em frente a que eu iria atravessar e, como as demais motos estavam há uns quatro quarteirões de distância, rapidamente atravessei e segui correndo. Nisso, o policial que tinha fechado a rua começou a gritar comigo:
A Sra. não viu que eu fechei a rua? Quer morrer?
E eu gritei em resposta:
O Sr. não fechou a minha rua, fechou a outra faixa, então eu podia atravessar sim.
Aí ele já indignado com o meu grito, gritou de volta:
O que?? A Sra. sabe com quem está falando?
E o Sr., sabe com quem está falando? Faz seu trabalho e fica quieto que eu não fiz nada pro Sr.
Ele continuou gritando, mas não podia sair da faixa de pedestre que tinha fechado e aí eu mandei ele para um lugar nada legal em alto e bom som e saí correndo. Que falta de respeito comigo, eu pensei. Depois eu tive taquicardia e parei no meio da corrida. Tive que esperar o ar voltar para o corpo. É que foi muito natural gritar com o policial, ele também não sabia quem eu era e, na minha cabeça eu não podia ficar quieta. Tipo, eu explodi, depois percebi o que aconteceu e, depois que passou o susto, eu fiquei rindo da minha falta de noção (muito, muito sanguínea de novo).
Parei o carro no meio da rua só para dar oi para o porteiro da antiga escola das crianças, recebi um obrigada com lágrimas nos olhos e um sorriso banguela, mas sincero, do mendigo do farol que me agradeceu por abrir a janela e não ter medo dele, mesmo que eu não tivesse nenhum real para dar para ele naquele momento. Ouvi desabafos na internet, liguei pra minha irmã para dizer que eu estava indignada com uma série de pessoas, conversei com os borboletas e vi sinais nas folhas que caiam no Passeio Público enquanto eu observava como é bonito ver pessoas de todas as idades correndo, acordei os meninos dizendo que eles eram super felizes por me ter como mãe e receberem um café delicioso para eles antes de irem para a escola (do nada, só faltou cantar “o dia já nasceu lá na fazendinha).
Tem dias que são como os que eu descrevi acima, mas tem outros que eu me sinto indignada com a minha própria existência. Hoje foi um desses dias, em que eu saí do trabalho pensando que me falta realmente um lugar no mundo. É como se eu enxergasse coisas que ninguém enxerga e isso me faz me sentir meio louca. É ruim se sentir meio louca, confesso. Tudo me indigna, aí eu começo a falar, a desabafar com quem está do meu lado, aí eu pareço ainda mais louca e isso me incomoda.
Respirei fundo e algo no meu coração me dizia para parar num bar ali do caminho de casa e aproveitar a promoção do happy hour para tomar um chopp. E aí, para me convencer, logo me veio à cabeça uma cena de um dos meus filmes prediletos, Um sonho de liberdade, na qual o Andy Dufraine convence o diretor da prisão a permitir que os presos tomem uma cerveja após terminarem uma obra dentro do presídio e ele diz a seguinte frase para convencer o tal diretor: “todo homem se sente mais homem quando toma uma cerveja depois de um dia de trabalho”. Eu realmente deveria ir, pensei, aquela frase não era à toa.
Me sentei no bar e pedi o meu chopp, que veio numa caneca congelada e ainda paguei baratinho por ele – grande dia. Aí comecei a pensar em tudo o que me deixava indignada e na minha sensação permanente de inadequação. Uma playlist aleatória tocava no bar e, de repente, começou a tocar “Rocket Man” do Elton John. Eu fechei os olhos, respirei e entendi porque fui lá tomar um chopp antes de vir para casa: porque Deus queria que eu entendesse que eu sou uma astronauta, alguém que está aqui neste mundo, mas não se sente parte dele. Alguém que vive de forma permanente com a sensação de estar longe, muito longe de casa – que aqui eu entendo como o lugar em que a gente encontra o sentido. E por estar longe de casa, tal como o astronauta da música do Elton John, me sinto sozinha tantas e tantas vezes, contemplando um vazio ao meu redor que parece sempre infinito. É, Elton tem razão quando conclui que Marte não é um bom lugar para criar filhos.
Um chopp, uma música, uma cena de filme… Um happy hour solitário antes de vir para casa alimentar os gatos, regar minhas plantas e dar vida às minhas conclusões antes de dormir para amanhã começar tudo de novo. Que bom que eu escrevi, porque talvez amanhã já não fizesse mais sentido eternizar o dia em que eu me entendi como o astronauta da música do Elton John.
Sanguíneos têm memória ruim. Sanguíneos vivem no ar. Aliás, eles são representados pelo elemento ar e o ar é invisível, não pede licença para entrar e é poético porque nos enche de vida e nos invade sem que a gente se dê conta disso. Ele se expande, ele está em tudo e, quando ele nos falta, a gente morre. Talvez na minha pretensa loucura, no meu jeito avoado, esteja a minha redenção, a minha felicidade e a minha salvação. Talvez eu me sinta amada pela vida na mesma proporção que me sinto inadequada. Que o ar nunca me falte, mesmo que às vezes a minha alma se refugie no espaço.
It’s lonely out in space
Rocket Man – Elton John
É solitário lá fora, no espaço
On such a timeless flight
Num voo infinito assim
And I think it’s gonna be a long, long time
E acho que vai demorar muito, muito tempo
Till touchdown brings me ‘round again…
Até que a aterrissagem me traga de volta